quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

Homenagem a Narciso Yepes


Narciso Yepes com seis anos

Narciso Yepes nasceu em Campo de Lorca a 14 de Novembro de 1927 
e morreu em Murcia, a 3 de Maio de 1997. Passou a infância no campo, 
onde aprendeu a comunicar com a Natureza, o que influenciou a sua vida. Saboreou o silêncio e o vento, quando se deslocava para a cidade, em cima de um burro, para aprender as primeiras notas e as primeiras letras. Mais tarde percorria, de bicicleta, os mesmos caminhos para ir à escola, tanto no solarengo Verão, como no gelado Inverno. Desde muito pequeno 
compreendeu o valor da vontade e da preserverança. Desde adolescente, 
que na cidade lutou contra a insistente falta de meios, substituindo todas 
as carências por uma atenção disciplinada e intensa, o que lhe permitia 
reaproveitar e fazer render o tempo. Com apenas 15 anos já dava aulas 
a alunos mais velhos que ele, e estudava de noite com livros emprestados. 
A concentração e a memória assim adquiridos marcaram todo o seu trabalho 
rigoroso e criativo. Obteve títulos e diplomas com classificações máximas.

A guitarra de dez cordas
Autodidacta, aprendeu desde sempre a abrir caminho entre as mais distintas correntes e a rodear-se de pessoas que souberam incentivar a sua ânsia de superação, a sua criatividade latente e as suas faculdades de tocar guitarra. Foi colhendo todos os ensinamentos com discernimento implacável na busca da verdade, sem apoios de nada nem de ninguém e à custa deste seu dom, foi avançando e crescendo. Ultrapassou as fronteiras estabelecidas na técnica da guitarra, inventou leis fléxiveis, tornou verdade tudo o que a sua criatividade lhe ditava, sem medo das críticas e das regras rígidas que estavam estabelecidas. Trabalhou com Vicente Asencio, George Enescu, Walter Gieseking, Nadia Boulanger. Mas não se relacionou só com homens da música: pintores, escultores, arquitectos, escritores foram também seus amigos. Na realidade foram amigos todos os que se interessavam por ele e pelos valores da vida e da solidariedade entre os seres humanos. Foi valente e humilde, não impondo nada, apenas privilegiando mais e mais a comunicação com os outros através da sua guitarra.  Escolheu o caminho da sabedoria e a sua vida foi uma busca sem tréguas de tudo o que lhe abria as portas do conhecimento, desde o mais abstrato ao mais quotidiano. Pareceu-lhe insuficiente o som da guitarra de seis cordas e dotou-a de mais som, de mais equilíbrio sonoro, fazendo da sua guitarra de dez cordas um instrumento mais expressivo e apropriado para tocar toda a música antiga sem ter de a mutilar com transformações. Saiu das fronteiras de Espanha e Percorreu os cinco Continentes onde, ano após ano, voltava sempre aos mesmos lugares porque o seu público assim o reclamava. Deu recitais e concertos nas mais famosas salas do mundo, tocou com as mais prestigiadas orquestras, colaborou com os melhores maestros e situou a sua guitarra de dez cordas no patamar mais alto da música clássica. Pedagogo nato, transmitiu, aos que quiseram aprender, o melhor de si mesmo. Não ficou guardado nenhum segredo. Ensinou mais do que guitarra, mais do que a própria música: deu lições de vida com o seu exemplo e a sua experiência. Trabalhador incansável, fez investigação pelas bibliotecas mundiais e devolveu à ribalta músicas já esquecidas. Enriqueceu a literatura da guitarra com um vasto repertório de tablaturas. Seguiu sempre um critério consciente de responsabilidade frente a toda a obra de arte e toda a criação humana. Narciso deixou-nos um legado imenso e foi sempre fiel ao seu lema de dar amor através da sua guitarra, o que conseguiu até ao último concerto. 
Hasta Siempre Maestro!



sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

O Génio do Cante Flamenco

Camarón de la Isla (nome artístico de José Monge Cruz), nasceu a 5 de Dezembro de 1950, em San Fernando (Cádiz). José Monge recebeu o sobrenome de Camarón, de seu tio Joseíco, por ter cabelo ruivo e o apelido “de la Isla”, por ser natural de San Fernando, antigamente chamada de Isla de León. Cresce num ambiente rodeado pela arte do canto, toque e bailado puramente flamenco. Com apenas oito anos já cantava nas tabernas e praças de Cádiz e San Fernando. As suas primeiras actuações foram em Venta de Vargas, onde escutou e aprendeu o cante flamenco de Manolo Caracol e La Niña De Los Peines, entre outros. Os primeros passos dentro do mundo profissional do flamenco são dados aos 15 anos (1966) com Miguel de los Reyes no Tablao Gitano de Málaga, onde tomará contacto com um dos seus mais destacados mentores, o cantor Antonio El Chaqueta. 
Camarón de la Isla e Paco de Lucía
Chega a Madrid em 1968, onde Antonio Sánchez, pai de Paco de Lucía, depois de o ouvir cantar, coloca-o em contacto com o seu filho. A junção é perfeita e este encontro dará lugar a uma das parelhas mais emblemáticas da arte do flamenco do século XX. Em 1969 gravam o seu primeiro disco, que será o primeiro de muitos. Os Festivais Flamencos permitem a Camarón de la Isla alhear-se do ambiente dos “tablaos” e entrar em espectáculos, até que começa a dar recitais onde figura como artista único. O concerto no Palácio dos Desportos em Madrid perante quinze mil pessoas é um marco na historia do flamenco. Em Julho de 1992 Camarón de la Isla morre vitima de doença linfática en Santa Coloma de Gramanet (Barcelona).
A 18 de Maio de 1920 Sevilla saiu à rua para prestar honras de imperador ao corpo embalsemado de um matador de touros cigano: José Gomes Gallito, o filho de Gabriela. A 4 de Julho de 1992 San Fernando, despida da sua alma, saiu à rua para prestar honras dignas de um Messías ao corpo de um cantor cigano: José Monge Cruz, Camarón de la Isla, o filho de Juana la Canastera... Há quem assegure que, tanto naquele dia em que Gallito foi senhor e amo dos ruedos, também Camarón de la Isla – o génio silencioso que tudo nos disse, cantando – se converteu em lenda nesse 4 de Julho de 1992.
Só que isto não é uma certeza, porque Camarón de la Isla já era uma lenda nos dias em que andava por este velho Mundo... Ele não partilhou o trono nem o ceptro do cante flamenco com ninguém e, sem rival, reinou sempre em absoluta solidão. Camarón de la Isla partiu. Mas “no llores, pueblo gitano”! Ele deixou-nos o mais efectivo e invencível dos seus talismãs: o seu canto, que nos guiará, iluminará e dará alento para percorrer o imenso vale da tristeza que pelos tempos nos invadirá. Até porque nesse dia 4 de Julho de 1992, em que cinquenta mil mãos abertas se elevaram ao céu, ao passar o seu corpo coberto por um sudário bordado a ouro e fogo, a lenda não nascia. A lenda apenas continuava.